O mau encontro 20/04/2018

Silvia Ramos, Anabela Paiva, Pablo Nunes

Um medo assusta a maioria dos cariocas: o encontro com um projetil de arma de fogo que não lhes era destinado. Nada menos que 92% temem ficar no meio de um confronto entre criminosos e policiais; em um assalto que acabe em tiros ou de que o acontecimento chamado “bala perdida” ocorra com eles ou seus familiares.

O temor é mais do que justificado. Na pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Datafolha, 75% dos entrevistados disseram ter ouvido tiroteios próximos; 30% relataram ter efetivamente ficado no meio de fogo cruzado nos últimos 12 meses. Quando consideramos apenas os moradores de favelas, os que se viram em meio a tiroteios no último ano sobe para 37%.

Os resultados da pesquisa são espantosos e mostram um Rio em que medo e vitimiza- ção efetiva quase coincidem, em alguns casos. Por exemplo, 79% afirmam ter medo de ouvir tiroteios próximos; enquanto 75% efetivamente os ouviram no último ano. O Fogo Cruzado, serviço colaborativo e não oficial que mapeia tiroteios no Rio de Janeiro, divulgou que, apenas no mês de janeiro de 2018, foram notificados 688 tiroteios na capital e Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o maior número desde a criação do aplicativo.

Quando 92% da população de uma cidade diz que tem medo de ser vítima inadvertida de um tiro, é possível pensar que o medo é quase universal. Os que têm mais medo das ocorrências de mortes e ferimentos por tiroteios são as mulheres (95%) e os jovens (94%). Aliás, melhor seria perguntar: quem são os 8% que não têm medo? No caso dos confrontos entre criminosos e policiais, 12% dos homens e 11% dos que têm mais de 60 anos afirmaram não ter medo.

Ao viajar pelo Brasil verificamos que até em pequenas cidades as cadeiras nas calçadas em frente às casas foram substituídas pelas grades nas janelas e portas trancadas. Isto ocorre não só nos bairros abastados, mas também em habitações modestíssimas de bairros pobres. O temor da violência observado na realidade se traduz também em dados. Se compararmos os medos dos cariocas (aferidos em março de 2018) com os dos brasileiros (registrados em pesquisa de julho 2017), verificamos que os mesmos receios afetam a população do país.

Por exemplo, o medo de ter sua residência arrombada ou invadida (cariocas 84%, brasileiros 85%); o medo de se envolver em brigas e sofrer agressão física (68% cariocas; 80% brasileiros). Quando indagados se tem medo de sofrer violência por parte da PM, 79% dos brasileiros e 70% dos cariocas disseram que sim. Andar sozinho no próprio bairro à noite amedronta 49% dos brasileiros e 67% dos cariocas.

No caso do Rio, a pesquisa atual mostra que há uma preocupação particular com a violência por tiros, sem que a vítima seja parte direta do evento (criminoso ou o agente da lei). O medo de ser apanhado num encontro desleal e imprevisto com a morte por tiroteio atravessou fronteiras clássicas da segurança pública e neste momento contamina de forma quase indistinta jovens e idosos, moradores de favelas e dos bairros de classe média, brancos e negros, como mostram os resultados da pesquisa de vitimização.

A prevalência do medo torna mais provável a perspectiva de um futuro sombrio para o país e para o Rio na área da segurança e dos direitos. Mais pessoas estão dispostas a abrir mão de princípios bá- sicos em troca da percepção de que há comando firme contra criminosos. Além de apoiar a intervenção, a maioria dos cariocas endossa os mandados coletivos de busca, é a favor da revista de mochilas de crianças sem a presença de representantes dos conselhos tutelares e talvez outras medidas mais graves de restrição de direitos que lhes forem apresentadas.

Não vamos nos enganar. Eventos traumáticos na cidade, como grávidas baleadas, policiais mortos, chacinas em favelas, aumento de roubos e de tiroteios indicam que as políticas de segurança continuam “não funcionando”. Quanto mais falharem, o apoio a medidas fortes, como a intervenção federal, tenderá a aumentar entre uma parcela importante da população. E se a intervenção “não funcionar”, como tudo indica até agora, quarenta dias após sua decretação, a tendência entre a maioria de moradores ouvidos em pesquisas de rua não será a crítica à intervenção, mas o apoio ao estado de emergência, e depois ao estado de sítio.

Um repórter estrangeiro do jornal Washington Post se surpreendeu ao ver uma antiga moradora da favela Vila Kennedy, no começo de março, bradando aos soldados do Exército: “me revistem, me revistem”, em apoio declarado à presença de 1.400 militares em operação diurna local. Depois de quase um mês, os indicadores de violência, de abusos policiais e de medo na Vila Kennedy continuam como antes. A pergunta é: essa moradora vai apoiar a proteção de direitos humanos se a situação na Vila Kennedy piorar? Ou apoiará ações militares mais fortes e mais violentas? O recorde de medo da violência verificado na pesquisa Fórum/ DataFolha e a reiteração da tese de que “nada funciona” em segurança pública está na base da operação política que nos colocou diante do imprevisível.

A intervenção foi uma medida precipitada, arriscada e irresponsável, que pode ter colocado o Rio e o Brasil em uma escalada de anseio por medidas mais radicais, defendidas por argumentos capciosos por políticos. A crença, repetida em discursos oficiais de que “o assassinato de Marielle prova que a intervenção era necessária” pode se transformar na percepção de que a chacina de cinco rapazes em Maricá e o assassinato de outros oito na Rocinha mostram que a intervenção não é suficiente e outras medidas são necessárias.

Não se trata de pânico ou beco sem saída. As saídas são mais do que conhecidas: reformar as polícias; substituir as políticas de confronto por políticas consistentes e de longo prazo de Inteligência e investigação; mudar a relação com as populações das áreas de periferia oferecendo segurança, proteção da vida e policiamento de proximidade no lugar de uso da força; rever as políticas de drogas que desperdiçam recursos e profissionais na guerra às drogas, entopem as penitenciárias com jovens do varejo do tráfico e fortalecem as facções do crime; modernizar o sistema de justiça criminal, abarcando não só as polícias, mas as Defensorias, MP e Justiça; integrar as municipalidades no sistema.

Nós sabemos o que precisa ser feito para responder ao medo e aumentar a segurança. O problema, nessa altura da vida do nosso país, é quem vai fazê-lo e como.

Étienne de La Boétie, o autor do “Discurso sobre a servidão voluntária”, obra do século XVI, argumentou que servidão voluntária é mau encontro, é supressão da vontade pró- pria assimilando a vontade do tirano como razão. A intervenção federal e outras medidas de força em curso para promover a segurança talvez atinjam a história do Brasil na forma de um encontro indesejável e acidental com parte de nossa natureza: violenta, injusta e cruel.


Silvia Ramos é cientista social, Anabela Paiva é jornalista e Pablo Nunes é cientista político. Todos coordenam o Observatório da Intervenção no CESeC/UCAM.

Foto do post: Betinho Casas Novas